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O Projeto Portáctil investe em dispositivos que facilitam a leitura, em braile, de conteúdos digitais e impressos
O dispositivo lê o material e, com superfície tátil, faz a transcrição em braile Fotos: Viviane Pinheiro
Olfato, paladar, tato, audição. Quando a experiência do "olhar" não está ao alcance físico, são os outros sentidos do ser humano que possibilitam uma comunicação eficiente em sociedade. No Brasil, segundo o Censo divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010, cerca de 35,7 milhões de pessoas têm algum nível de deficiência visual, sendo mais de 506 mil efetivamente cegas. Diante desse número, o investimento em acessibilidade torna-se uma prioridade sócio-educacional, mobilizando programas de tecnologia como o Projeto Portáctil, desenvolvido no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE).
A vontade de investir em tecnologia assistiva inquietava, desde 2002, o professor e pesquisador do IFCE, Anaxágoras Maia Girão. "Como engenheiro, eu gosto de pensar em sistemas de automação que dão maior conforto para pessoas com deficiência visual", afirma. Junto a essa inquietação, surgiu, em 2009, uma parceria com a empresa AED Tecnologia, incubada no IFCE, que possibilitou a criação do Projeto Portáctil.
O professor Anaxágoras Girão diz que tinha vontade de investir em tecnologia assistiva desde 2002, com o objetivo de auxiliar deficientes visuais
A ideia inicial do projeto visava construir um dispositivo em forma de caneta, que possibilitasse a transcrição de conteúdo impresso para o braille. A partir do aperfeiçoamento das pesquisas e da apresentação do projeto ao Ministério da Educação, em 2010, algumas mudanças foram estabelecidas. Com o recurso financeiro do governo federal, o projeto passou a ser desenvolvido pelo Laboratório de Pesquisa Aplicada e Desenvolvimento em Automação (Lapada) do IFCE, sob a coordenação do professor Anaxágoras Girão. A cela braile existente na caneta - um dispositivo com oito pinos móveis que formam os caracteres em braile - deu lugar a um dispositivo portátil de navegação, semelhante a um mouse, com três celas na parte superior. Os dispositivo também armazena arquivos de texto, cujo conteúdo é transcrito em braile para o usuário.
Na configuração atual, o dispositivo de navegação braile atua no dedo do usuário, proporcionando o entendimento e a fluência dos caracteres. Abaixo das celas, seis botões atuam com funções auxiliares na navegação. Nas laterais, ficam os botões para voltar e adiantar as linhas do texto. Já na porção inferior, fica localizado o leitor óptico e o sensor para direcionamento.
O usuário cego também pode gerar o próprio conteúdo, utilizando tablets ou smartphones. A conexão com esses dispositivos é feita através de Bluetooth. Nos tablets, o Portáctil admite um teclado de silicone, semelhante aos teclados de computadores convencionais. A digitação permite ao usuário retorno auditivo, facilitando o processo de produção textual.
Desafios
Mesmo facilitando a digitação e a leitura, o sistema ainda se encontra em fase de desenvolvimento desde 2010. Segundo o coordenador do projeto, Anaxágoras Girão, a primeira etapa de concepção e usabilidade junto aos usuários já foi vencida. O desafio agora é o apoio financeiro para distribuir o serviço.
O financiamento concedido pelo Ministério da Educação, no valor de R$ 1 milhão, possibilitou a criação de 136 equipamentos (tablets com película de silicone, que serve como teclado, e o mouse especial). Além desse recurso, em fase inicial, o projeto contou com R$ 90 mil do Banco do Nordeste. Segundo Heyde Leão, diretor executivo da empresa AED Tecnologia, os 136 equipamentos já foram entregues à Prefeitura de Fortaleza. Para a finalização do projeto, ainda é preciso produzir 64 equipamentos e realizar a capacitação de professores e alunos nas escolas municipais. "É preciso dar atenção a esse sistema, que só vai para frente a partir de duas coisas: suporte e acompanhamento", afirma Leão.
O professor Anaxágoras reconhece que o projeto já poderia estar beneficiando os estudantes, mas a burocracia e a recente transição no governo municipal atrasaram o processo. "Com a mudança de gestão, o investimento ficou preso. Então, precisamos esperar um pouco mais para concluir os equipamentos e liberar para as escolas", explica.
Mesmo com a conquista de alguns avanços, o Portáctil ainda precisa de aperfeiçoamento. Segundo Anaxágoras Girão, hoje, o sistema já permite ao aluno ter acesso em braile a um material que o professor disponibiliza em formato digital. No entanto, as expectativas são maiores. "Queremos torná-lo um leitor de livros. A gente quer que o aluno possa levar para casa, escrever uma nota, uma redação, com autonomia", conta o professor.
Para a leitura a partir de materiais impressos, os pesquisadores estão investindo em um aplicativo denominado OCR (reconhecimento ótico de caracteres, na sigla em inglês), que transforma o tablet em um scanner, a partir de fotos tiradas por sua câmera. O posicionamento das folhas impressas ainda representa uma dificuldade para as pessoas com deficiência visual e, nesse sentido, o projeto reconhece a necessidade de melhoramento do software.
Avanço
O revisor braile Martonio Torres Carneiro tem deficiência visual desde pequeno e já teve a oportunidade de testar o sistema, quando o projeto foi apresentado à Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para Idosos e Pessoas com Deficiência, do governo do Estado. "De início eu senti um pouco de dificuldade, como toda coisa nova. Mas como sou muito curioso e já tinha contato com meu iPhone, facilitou mais", comenta. O revisor demonstra encantamento com a invenção. "O mais interessante é a navegação com cursor. É um salto tecnológico avançadíssimo. Com esse sistema você pode ter uma biblioteca braile na mão", revela.
Martonio reconhece ainda a importância do equipamento para a formação das crianças. "Com o Portáctil, as crianças têm acesso ao braile e ao computador. E essa base é fundamental, já que o braile é nosso método mais eficaz de escrita e leitura", afirma o revisor.
A coordenadora especial de Políticas Públicas para Idosos e Pessoas com Deficiência, Isabel Pontes, integra o grupo de trabalho que pretende levar o sistema para todas as cidades do Estado. "Precisamos chamar a sociedade para conhecer essa tecnologia assistiva. O usuário e sua família são os focos do nosso trabalho", diz. Para Isabel, acolher iniciativas como essa é um dever governamental. "Nossa participação nada mais é do que o Estado cumprindo a sua responsabilidade no sentido de dotar as escolas de tecnologia assistiva".
Solução reduz custos para adaptar obras
O professor Anaxágoras Girão diz que tinha vontade de investir em tecnologia assistiva desde 2002, com o objetivo de auxiliar deficientes visuais
Os investimentos no Projeto Portáctil são mínimos diante dos custos comerciais gerados nos processos de transcrições comuns para o braile. Totalizando um gasto de cerca de R$ 4 mil na obtenção do equipamento completo - formado por um tablet, um teclado de silicone e um mouse especial desenvolvido pelos cearenses envolvidos no projeto -, o sistema Portáctil valoriza a comodidade e a economia da produção.
De acordo com levantamentos oficiais realizados junto à Gráfica Braille da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social do Ceará e à Gráfica Civiam, especializada neste tipo de produção, uma página em tinta de um livro convencional gera de três a quatro páginas em braile, após o processo de transcrição.
Tomando como exemplo o clássico infanto-juvenil "Harry Potter e a Pedra Filosofal", de autoria de J.K. Rowling, obtém-se um custo unitário de R$ 4,80 por página transcrita. A obra totaliza aproximadamente 2.160 páginas em braile, que devem ser acondicionadas em 18 volumes com 120 páginas cada, a um custo final de R$ 10.368 por unidade transcrita.
Os números inviabilizam a produção do material em escala suficiente para atender ao público alvo, bem como dificultam a logística de armazenamento, uma vez que os volumes ocupam bastante espaço. Além disso, o próprio material em braile, com o uso frequente e o passar do tempo, perde suas características de impressão e percepção tátil por parte do usuário.
Bibliotecas acessíveis
A acessibilidade é um desafio em muitos setores da educação. Espaços como bibliotecas, referências pedagógicas na aprendizagem através da leitura, em sua maioria, não contam com o suporte necessário para atender pessoas com deficiências visuais. De acordo com o 1º Censo Nacional das Bibliotecas Públicas Municipais do Brasil, de 2009, apenas 9% das bibliotecas públicas municipais oferecem serviços de audiolivros ou livros em braile, ou ainda, estações de trabalho adaptadas. No Nordeste, 95% das bibliotecas municipais não possuem serviços para cegos e 96% não oferecem serviços para pessoas com outras necessidades especiais.
Em Fortaleza, a Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para Idosos e Pessoas com Deficiência já se articula com a Biblioteca Pública Governador Menezes Pimentel. "Estamos procurando disseminar ainda mais a leitura em braile, transcrevendo exemplares na gráfica do governo e passando para as bibliotecas", afirma a coordenadora Isabel Pontes. "Do ponto de vista tecnológico, ainda não temos resultado, mas já buscamos um diálogo nesse sentido", diz.
Na Praça do Centro de Artesanato do Ceará (Ceart), um vagão de trem é um espaço de leitura e acessibilidade. Doado pela Rffsa, o vagão está preenchido por de cerca de 2.500 livros, dentre os quais destacam-se exemplares da literatura cearense, de política e de legislação, transcritos para o braile